23/03/2008

Trecho de A Primavera, O Sagrado e A Voz Ausente



“Se faz alvorada. É assim que acontece a primavera. Na terra e em mim... Repentinamente, o acordar das cordas de um violino há muito adormecido. Da flauta e do oboé esquecidos. É a música do despertar. Todos os grãos se abrindo. Subindo. Perfurando a terra triste. Pequenas folhas e brotos, cantando sobre os vales, penhascos, planícies, campos, jardins, quintais, canteiros e floreiras. É um tempo de brisa leve. De umidade e frescor. De atenuar rigores. De sair e olhar o mundo. Um tempo de celebração. De orquídeas, rosas, jasmins, belas-emílias, lírios, margaridas, agapantos, azaléias, glicínias e rododendros. Desabrochando em algaravia juvenil. Os pássaros na amoreira, cedo, no seu alarido matutino. Um beija-flor entra no jardim de inverno. Instala-se no pequeno galho de hera que infiltrou-se pela fresta da parede. Na porta aberta da cozinha, dois rouxinóis-bebês espiam a casa ainda silente da última noite de inverno. É primavera. Aos poucos, rompo o cristal de gelo que segura minha alma. Sou broto novamente. Germinando. Crio asas e ensaio pequenos movimentos. Como os rouxinóis filhotes. Poderei novamente? Arriscarei? Sim, mais uma vez arriscarei. Serei manhã como esta manhã...

..Obedeço ao tempo divino. Sou dádiva e celebração. Esperança de Deus. Passado, presente, futuro, em novos acordes. E os mortos? Pensava que os tinha perdido para sempre. Todos aqueles que amei. Voltam agora. Com suas cenas. Os vejo tão nítidos e vivos, enquanto o aroma do café os atrai para esta nova primavera. Nos olhamos através da divisória do pensar. Sorrimos banhados na certeza do eterno. Porque a primavera é cheiro, fragrância, perfume. Essência de saudade e de promessa. Certeza de não morrer. Nas borboletas, grilos, abelhas. Que nascem e renascem. Caminho entre as novas florações da alma. Percorro anseios e desejos. Novamente. Saio para colher ervas e temperos. Rosmaninho, alecrim, hortelã, salsa, mangerona. Invento pratos. Coloridos. Caçarolas com legumes. Todas as cores recolhidas nas feiras e quintais. Um festival. As frutas se oferecem em dádiva sensual. Ameixas, maçãs, pêras, nectarinas. Doces e compotas. Abundância de Deméter em alegria primaveril. Na noite estrelada, os riachos cantam e os bosques sussurram magias. Voltamos, novamente, os olhos para o céu. Descobrimos, então, que a noite é sempre primavera a piscar estrelas. Código divino.”